Se você estuprou alguém, leia.
Essa carta pode ser pra você.

Não vou me identificar para que meu pai não saiba dessa história. Quero evitar que sinta a enorme tristeza e indignação que as pessoas que gostam de mim sentiram quando contei o que me passou. Quero protegê-lo de todo o tipo de reação que essa história poderia desencadear nele. Esse é também um relato a mais para que homens e mulheres possam entender melhor o que acontece na vida e na mente de uma pessoa que foi estuprada. É mais uma narrativa dos efeitos do machismo brasileiro do séc. XIX.
QUANDO ACONTECEU
Voltando
da minha festa de aniversário no ano de 2009, um amigo de faculdade me
acompanhou até em casa num dia frio. O convidei para entrar, assim
esperaria o taxi dentro de casa, quentinha. Foi uma gentileza a uma
pessoa com quem convivi na faculdade por mais de 5 anos. Mas parece que ele entendeu o recado de outra forma. Estávamos
bêbados, e eu tinha total confiança nele. Nessa noite ele me estuprou.
Por muito tempo não me lembrei do que aconteceu naquela noite. Apenas
sentia uma angústia difusa e inexplicada, que pude entender
aproximadamente dois anos depois.
QUANDO ENTENDI O QUE ACONTECEU OU QUANDO DEI NOME AOS BOIS
Dois
anos depois do ocorrido, me mudei à capital de outro país, depois de um
ano de profunda angústia e tristeza na minha cidade natal. Decidi fazer
uma pós-graduação fora, ou acabaria me matando se seguisse vivendo aí.
Para conhecer mais gente e me envolver em um projeto artístico, me meti
em um grupo de teatro, que “coincidentemente” trabalhava com
improvisações sobre campos de concentração, cujos trabalhos deram origem
a uma peça, meses depois. Durante uma improvisação, em meio a gritos,
golpes e estupros simulados, minha memória voltou ao ano de 2009.
Durante
esse exercício lembrei desse meu colega, sobre mim, na minha cama, me
segurando pelo pescoço e me asfixiando. Me lembrei da luta para escapar
daí e de como a cada tentativa de sair dessa relação sexual não
consensuada – e com preservativo – , ele me batia mais. Lembrei como
achava que ele ia me matar sem nem perceber, ou propositalmente. Me
lembrei de como não entendia se a violência dele era dirigida a mim ou
se era algo próprio dele. Me lembrei de como não entendia, no momento,
sei se ele achava que eu gostava daquilo, ou se era pura maldade.
Nos
momentos de consciência (tive momentos em que acredito ter desmaiado)
lembro de tentar encontrar algo para golpeá-lo, e não encontrar.
Recordei de quando uma professora de história mencionou casos de
violência sexual e disse que para o sádico não interessa ver o prazer
alheio. Fingi estar gostando, não funcionou. Pensei então que do que ele
gostava era da minha submissão e humilhação.
A
saída que encontrei foi dizer a ele: “Vai pra casa, não estou no meu
melhor dia. Quero passar uma noite incrível com você e já estou cansada…
Você é incrível e merece o meu melhor”.
Ele parou. “Entendeu”. Era o melhor que eu poderia dizer a uma pessoa narcisista e psicopata. Ele se convenceu dos elogios, acreditou em mim.
Sua resposta pra isso foi: “Tudo bem!
Vem aqui, encosta a cabeça no meu peito. Sabia que eu gosto de você
desde o primeiro momento que te vi?” Ele queria demonstrar afeto. Não
fui. Permaneci encolhida, nua e protegida por um travesseiro, no outro
lado da cama.
Mandei ele embora engolindo o mar de
choro dentro de mim. E sorri. O tratei como um Rei que teria sua grande
recompensa no futuro. Não lembro como estive depois que ele saiu pela
porta, nem dos dias seguintes. Não me lembro do que fiz, se fiz, para
onde fui. Apaguei. Sei que deletei meu MSN e desapareci do campo de
visão dele, na medida do possível.
AS REAÇÕES DAS PESSOAS PRÓXIMAS
Dias
depois fui falar sobre o ocorrido com meu ex-namorado num café, onde
chorei muito, sem pudores e sem lenços de papel, a ponto de voltar pra
casa com os punhos das mangas e parte da blusa molhada de lágrimas. Eles
se conheciam. Saímos algumas vezes junto com o então futuro estuprador e
outros amigos mais, todos, enquanto namorávamos. Ele não demonstrou
grande empatia e tampoco me apoiou. Disse que eu não podia fazer nada,
porque o cara era poderoso e eu era uma defensora da liberdade sexual. A
justiça decidiria contra mim e eu acabei considerando que ele tinha
razão.
Depois,
em algum momento, falei com meu melhor amigo e não sei se ele acreditou
em mim. Nessa ocasião comecei a ter dúvidas se houve estupro ou se foi
consensual. No mesmo período duas amigas próximas acreditaram, enquanto
outras pessoas ignoraram ou fizeram pouco caso. Não era um assunto fino
para mencionar em mesa de café ou durante um chá. E bastante incômodo
para uma cerveja ou um vinho. Não mencionei o ocorrido por muito tempo e
com essa atitude tudo parecia seguir normalmente. Eu achava que o
ocorrido não tinha o poder de me afetar diretamente.
Em nenhum momento as pessoas que souberam se prontificaram a me acompanhar para fazer uma denúncia. Pelo
contrário, lhes parecia normal que eu seguisse convivendo com a
presença dessa pessoa nas salas e corredores da faculdade ou em cada
lugar que eu ia para “me divertir”. Por sorte tive amigas que me
protegeram de encontrá-lo, me avisando de onde ele estava para que não
nos cruzássemos. Com o tempo era mais difícil esconder o nojo e a raiva,
e vê-lo simplesmente me deixava deprimida e me fazia sentir muito
vulnerável por dias.
ESTUPRO É UMA PALAVRA DIFÍCIL DE PRONUNCIAR
Nos
meses seguintes oscilei entre acreditar que houve estupro e que não
houve estupro. E as vezes preferia acreditar que a culpa era minha por
tê-lo deixado entrar, crer que eu poderia ter passado uma mensagem dúbia
pra ele, ou simplesmente busquei. Não sei. Era mais fácil para mim pensar que eu era a responsável.
Além disso, o mundo em volta me dizia que eu tinha culpa. O lado mais
frágil, a mulher estuprada, ainda que feminista e formada na área de
ciencias humanas, acredita ou opta por acreditar que foi responsável,
eu. Era mais fácil pensar que havia tido uma experiência sexual
diferente e violenta do que me classificar como vítima, enfrentar as
consequências de uma denúncia e carregar estigmas.
Me surpreendi quando um menino com
quem saía – por quem estive perdidamente apaixonada por meses – , e
conhecia ao estuprador, me disse, em tom de decepção: “eu sei que você
deu pra ele!” (O estuprador tinha espalhado pra todos que tinha “me
comido”!) Minha resposta foi: “não, ele praticamente me estuprou”. Praticamente.
“Praticamente me estuprou” foi o mais próximo que consegui chegar. Foi a
única nomeação possível que não me fazia entrar completamente dentro da
categoria de mulher estuprada.
Eu
entendia muito pouco do que tinha me passado, mas depois da
improvisação teatral, fora do Brasil e do ambiente opressor, passei a
entender. E Brasll passou a significar dor.
VOLTANDO À CIDADE NATAL
Voltei
à minha cidade natal para as festas de final de ano, carregando um
pacote de memórias bastante denso que se arrebentaria a qualquer
momento. E foi um dia depois da minha chegada. Dentro de um par de
semanas tudo o que eu tomava como cômodo e seguro não existiria mais.
No
dia seguinte à minha chegada fui encontrar quem foi meu melhor amigo em
2009. Marcamos para tomar uma cerveja no bar de sempre e lá pelas
tantas aparece o estuprador, que havia sido convidado pelo meu amigo.
Nesse momento tive a prova de que a solidariedade masculina se
sobrepunha a nossa amizade, ou que ele não tinha acreditado em mim.
Efetivamente nossa amizade tinha grandes limitações.
O
estuprador chegou e quis dar um beijo na bochecha, mas não permiti. O
máximo que pude fazer foi “oferecer” minha mão para um aperto cordial (o
que hoje me parece absurdo e descabido). Durante o aperto de mãos ele
disse que não sentia minha mão e que eu deveria apertar com força. Eu
nem podia olhar na cara dele, mas apertei mais forte porque no fundo
queria devolver aquela violência toda. Ao sentir minha força ele apertou
mais forte ainda, e me machucou bastante. Pra completar disse algo
como: “uma pessoa que não aperta suficientemente forte não pode ser
levada a sério”. Soou como uma ameaça.
(Passei duas semanas sem conseguir abrir e fechar a mão direita, pelo aperto que ele me deu na frente do meu “melhor amigo”)
Fiquei
paralisada, tomada de sentimentos como nojo e desprezo. Liguei pra uma
amiga e fomos pra outro lugar. Ela, uma pessoa querida e profundamente
iluminada, me ajudou muito a não ficar imobilizada pelo medo naquela
noite. Mas as opressões seguiriam.
A DOR DE USAR ARGUMENTOS MACHISTAS PARA EVITAR VIOLÊNCIAS MACHISTAS
Na
mesma noite, em outro lugar, encontrei um colega do mestrado, que a
partir de determinado ponto começou a discutir sobre a primeira guerra
mundial com outro cara que possivelmente seria neo nazista. Depois de
alguns minutos o neonazi tentou me agarrar e tive que usar argumentos
estilo “familia, tradição e propriedade” para que ele me soltasse. “O
que você faria se alguém agarrasse uma irmã ou filha sua na rua, sem que
ela queira, como você está fazendo comigo?” Eu tremia de medo. É
bastante comum que nazis estejam armados e esse cara estava
completamente fora de si gritando estar morrendo de tesão por mim. Ele
entendeu. Disse que se fosse com uma irmã dele ele ficaria furioso.
“Então”, disse, e saí rapidamente buscar minha amiga.
Acham
que esse meu colega do mestrado me tirou dali? Não. Ele desapareceu
esquina abaixo. Me deixou sozinha. Por “sorte”, sendo feminista e de
esquerda, eu conhecia suficientemente a concepção de mundo de um jovem
nazista para poder convencê-lo, por seus próprios argumentos, de que ele
não deveria me agarrar contra minha vontade. Doeu na minha alma.
Cheguei
em casa exausta. Existencialmente exausta. Vi que ninguém estava do meu
lado e que o que me passava por dentro escorria pelos meus poros. Já
não tinha mais como esconder de mim mesma o que eu vinha sentindo.
CONTAR PARA A FAMÍLIA
Tinha
marcado de reencontrar meu orientador porque tinha planos de fazer pós
no exterior, e nossas conversas sempre são muito agradáveis. Estava
fragilizada pelos últimos acontecimentos e e lhe contei o que havia
acontecido. Me fez bem. Achei que seria melhor começar contando pra ele
antes de contar para minha família. Essa notícia o deixou profundamente
mal e me senti ainda pior por ter contado. Vi que ele quis me ajudar,
mas não havia nada a fazer porque nesse momento eu não estava disposta a
denunciar. E sim, ele foi a única pessoa que vi fisicamente disposta a
ir à delegacia de mulheres imediatamente. Mas tive um medo de perder o
controle sobre os efeitos de tornar pública a história.
Havia
chegado o momento de contar para a minha mãe porque sentia que ela
acabaria sabendo de alguma maneira e a denúcia parecia eminente.
Foi
durante um almoço. Ela se levantou para recolher os pratos e pedi pra
ela ficar. Ela deve ter sentido que vinha uma bomba, porque empalideceu.
Não mencionei detalhes. Não vi nenhuma expressão na cara dela e não
tenho ideia do que sentiu. Me disse coisas como “Me sinto meio culpada
por ter te deixado ir morar sozinha… Sabia que algo assim podia
acontecer”. Depois de contar, depois do silêncio dela, enlouqueci. Me
ajoelhei e pedi perdão pra ela. Perdão por estar compartilhando algo tão
terrível, que eu preferia ter guardado pra mim. Ela se manteve fria por
dias e dias. Em alguns momentos, ao longo dos últimos anos, disse que
se o visse o mataria. Eu não tenho dúvidas.
INFLUENCIAS DA GRANDE MÍDIA NA MESA DA COZINHA
Chegou
janeiro e com ele o Big Brother Brasil. Numa das festas do programa, um
dos participantes estuprou uma menina, que dormia, bêbada. Gerou uma
discussão enorme (todo mundo lembra) e para mim tinha ficado muito claro
que havia existido estupro, como para outras centenas de mulheres. Sim,
é daquele cara cujos advogados atualmente pedem 20 milhões por danos morais à Globo.
Nesse
momento eu já me sentia mais cômoda para falar sobre o tema estupro,
que chegou à mesa, durante o almoço. Então minha mãe decidiu opinar
sobre o caso, dizendo: “quem mandou beber? Se a menina estava lá, estava
pra isso, a culpa é dela”. A culpa era dela, para minha mãe. A culpa
era dela, a culpa era dela, a culpa era dela. Isso ficou ecoando na
minha cabeça numa velocidade enorme até eu não resistir mais.
Minha
reação se expressou num grito visceral de ódio, raiva, decepção.
Profunda decepção. Eu nunca havia gritado desse jeito, na minha vida.
Aquela não era mais a minha casa. Eu gritava pra ela dizendo: “não
acredito que você está me dizendo isso, eu não acredito”. Tive vontade
de quebrar a casa e ela me olhava como quem não entendia nada,
assustada. Meu pai, por sorte, não escutou. Emiti as passagens e voltei
pro exterior 3 dias depois,. Depois de longos meses de conversas
bastante difíceis, fomos nos reconciliando e ela reconquistou minha
confiança. Mas tive que pedir pra ela não tocar mais no assunto.
*Mãe, se você vier a ler isto, saiba que eu te amo, muito. Que você
não teve culpa, nem eu. Isso é o que querem colocar na nossa cabeça,
por décadas, para nos fazer sentir responsáveis, quando somos vítimas.
Eu já não estou mais magoada. Tudo passou, Escrever agora é parte do
processo de compartilhar minha experiência.
- Que sorte eu tive por poder imigrar e por poder escapar tão facilmente…. Infelizmente com a maioria das mulheres, não é assim
-

Parte
do meu medo de contar para o meu pai é de que reaja da mesma maneira. E
meu maior medo é que não encontre nele o apoio que eu há anos sonho que
ele me daria, além de, evidentemente, expor a ele uma situação que
poderia afetar sua saúde ou incentivá-lo a reagir violentamente contra o
estuprador.
A FÉ NA HUMANIDADE E O MACHISMO DAS MULHERES
Devo dizer que depois do ocorrido encontrei homens maravillhosos. Em todas as relações posteriores (seja
em âmbitos de amizade, trabalho, romance ou sexo), os homens que
conheci foram extremamente respeituosos e generosos comigo na superação
do meu trauma. Em especial meu namorado, que tem uma conduta impecável
comigo, me ajudando muito no processo de expressar o que aconteceu e me
adaptar a novos ambientes e situações.
Faço questão de ressaltar isso porque
não existiu mais empatia de mulheres ou de homens. A propósito, existem
muitas mulheres que indiretamente estupram outras, quando covarde e
comodamente se posicionam a favor do estuprador. Não é uma questão de
ter nascido com uma vagina ou um pênis, de ser trans, bi, hetero, gay. É
um posicionamento político contra ou a favor da violência de gênero.
Cruzo com várias versões femininas do Rafinha Bastos diariamente e seria
absurdo ignorá-las como perpetuadoras do sexismo. (Acho que um dos
principais desafios do feminismo hoje é gerar solidariedade entre as
mulheres, e tirá-las de uma condição de competição para a atenção dos
homens).
Também
me encontrei numa situação em que uma amiga, militante feminista, me
culpava por não ter denunciado meu estuprador, argumentando que eu seria
culpada por novas vítimas dele. Apesar de ter grande afeto por ela, não
pude vê-la mais porque considero esse um argumento essencialmente
machista, mas com embalagem feminista. Essa posição culpabiliza mulheres
vítimas e infantiliza estupradores, além de impor diretrizes de
comportamento, novamente, às mulheres, quando a culpa e a
responsabilidade dos atos seguem sendo do estuprador e seus cúmplices.
DENUNCIAR?
Entendo a utilidade da identificação de estupradores, por parte da Justiça. Entendo a ideia de criar um cadastro de estupradores. Mas entendo que uma denúncia é incompatível com o meu caso. Eu não tenho suficientes recursos para evitar um processo contra difamação, danos morais, ou algo similar por parte de quem me estuprou. Ele, com o poder político e economico que tem, comparados aos meus, me cansaria pelo cansaço e me faria perder em várias instâncias. Mas o mais importante é que sustentar algo assim me levaria a seguir atormentada por esses fantasmas e memórias por mais tempo do que gostaria. E quero aplicar meu tempo na militância. É diferente ser estuprada por um zé ninguém ou por um filhinho de papai protegido por elites políticas.Em virtude dessa situação, minha opção é diferente. Por isso decidi que ia escrever esse relato, e decidi que faria publicar esse relato, e que esse relato chegaria até ele, anonimamente, sem nomeá-lo. Decidi que ele se reconheceria nesse relato, e que cada uma das pessoas envolvidas se reconheceriam nele. E que outras tantas pessoas se reconheceriam nesse relato, sem ter feito parte dele.
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